Autor(a): Ivaneide Ulisses*
Patrimônio científico e técnico como perspectiva de
inovação e de práticas de conhecimento e preservação.
O livro é
uma coletânea constituída por um conjunto de treze artigos, uma apresentação e
mais um prefácio. As questões: “O que
conservar como memória material e imaterial? Como inventariar? Como proteger?
Como transmitir às jovens gerações o gosto pelos museus, suscitar vocações e
demonstrar assim, que a ciência e a técnica são partes integrantes da cultura?”1, de maneira geral, norteiam o
conjunto da obra.
O volume possibilita ao leitor conhecer as condições de produção de coleções
especificadas em cada capítulo, bem como os processos de criação dos espaços
que abrigam tais conjuntos de objetos – museus técnicos, industriais e das
ciências –, alusivos aos séculos XIX e XX. Os autores são de países diversos
(Itália, França, Canadá, Bélgica, Japão e Brasil); alguns deles inicialmente
publicaram seus textos na revista Revue
du Musée des arts et métiers2,
cedendo direitos para composição da presente coletânea, coordenada pela
pesquisadora Maria Eliza Borges.
Além da diversidade das origens pátrias, os escritores trazem ainda, a
heterogeneidade de suas profissões, entre elas: historiadores, curadores,
pesquisadores profissionais, diretores de museus, arquivistas, sociólogos. O
que cabe perfeitamente na ideia-chave da obra, isto é, unir diferentes
perspectivas acadêmicas para problematizar via pesquisas questões, tais como as
já esquematizadas no parágrafo inicial da presente resenha.
Os museus de ciência e técnica são apreendidos nos textos como espaços
de memória e igualmente de inovação, o que nos remeteu ao trecho da canção do
compositor brasileiro Cazuza, “Eu vejo um museu de grandes novidades...”3, em que o cancionista contra-ataca o senso comum, que ainda liga museu
a “coisa velha”, ocorre no livro um processo semelhante a do exposto pelo
compositor. Ou melhor, os objetos não são apresentados apenas como testemunhas de avanços
tecnológicos que dão características das sociedades que os criaram em dado
passado, eles igualmente contribuem para novos benefícios, novas adaptações,
invenções. Sílvia Figuerôa no prefácio esclarece:
Museus...
“lugares de memória” e de “conservação” de patrimônio... Raramente alguém, de
modo espontâneo, associaria museus a inovação... No entanto, se tomarmos por
base a ideia de inovação que circula há mais de uma década, associação parecerá
óbvia...4
Ao continuarmos, encontramos o artigo de Dominique Poulot, “O modelo
republicano de museu”, em que o pesquisador francês problematiza as noções de
tradição, mudança e ruptura a partir do Conservatório de Artes e Ofícios.
Dominique Poulot aponta o teor educacional e cívico do referido espaço na:
[...]
perspectiva de ruptura com a tradição do gabinete de estudos reservados aos
especialistas: ele (Conservatório) pretende explicar a construção e a
utilização das máquinas e das ferramentas utilizadas nas artes e nos ofícios,
em nome dos princípios gerais da educação5.
Já o texto “Os registros de invenções na Lion oitocentista” de Daisy
Bonnard e Liliane Pérez, proporciona uma reflexão em torno do como ocorre à
constituição de uma coleção museológica candidata a se liga explicitamente as
percepções das elites de sua origem. E fica claro, assim como demonstra o
próprio termo “elites” no plural entregue pelas autoras, que tal constituição e
suas escolhas são resultantes de divisões e disputam, mesmo quando haja uma
aparente unidade desejada.
Em Lion, no
século XIX, as elites locais implantaram um sistema coletivo de gestão da
invenção, na linha do municipalismo herdado do Antigo Regime, calcado no ideal
de acesso aos saberes e a circulação de conhecimentos característicos do
iluminismo. Ao mesmo tempo, Lion torna-se um lugar privilegiado do
reconhecimento dos direitos de propriedade6.
Fiorenzo Galli e Laura Ronzon, em “O Museu Leonardo da Vinci de Milão”, preocupam-se com a trajetória desse
museu. Os autores trabalham com três ideias- chaves no artigo: a primeira delas
articula museu, cultura e a figura de Leonardo da Vinci; a segunda trata da
gestão museológica e o mercado, e a terceira preocupação exibida, é com relação à museografia e à apreensão dos usuários tanto do
espaço como das exposições.
Alguns dos artigos do livro se preocupam mais especificamente com o
imbricamento de trajetórias de locais de memória e suas coleções com o trajeto
de certos profissionais. Um deles “Léon Appert – da indústria ao museu” de
autoria de Anne- Laure Carré e “Marcellin Jobard; outro texto se intitula,
“Museu da indústria de Bruxelas” de autoria de Marie-Christine Claes; e,
finalmente, o escrito “Sociedade industrial de Mulhouse e a memória têxtil” de
Florence Ott. Todos eles têm em comum a importância da individuação nos
afazeres ligados à cultura e ao patrimônio. Fazer-nos pensar sobre o papel do
individuo nos seus contextos, modificando-os, ao mesmo tempo, que permanecem
mergulhados nos padrões sociais de seus grupos
sociais.
No artigo, “Expor a invenção” de Marie-Sophie Corcy, a autora valoriza as
“exposições universais” para os museus técnicos, industriais do século XIX e
XX, enfatizando a importância das exposições para aquisição de acervos e
igualmente para se pensar a museografia.
Do
ponto de vista museográfico, as exposições universais convidam os inventores e
construtores a refletir sobre os modos de apresentação da técnica... etapas
sucessivas de um procedimento ou fabricação, começam a aparecer nos estandes...7
Os conceitos de patrimônio e memória são o foco do pesquisador José
Newton C. Menezes, em seu texto intitulado “Os alambiques, a técnica da
produção da cachaça e seu comércio na América portuguesa”, examina documentação
e uma historiografia a respeito do “saber fazer” e dos objetos da produção da
cachaça nas Minas Gerais durante a América Portuguesa, assim como nos oferece
informações acerca das lutas contra e a favor da regulamentação da bebida na
Colônia e a concorrência com a produção do Reino.
Maria Eliza L. Borges no artigo, “Exposições Universais e Museus
Comerciais: entre o efêmero e o permanente”, entre o dilema de responder o
ideário do contínuo progresso industrial e o fim das exposições universais como
espaços privilegiados de tal expectativa, descreve a conjuntura da constituição do Museu
Comercial do Rio de Janeiro no
final do século XIX e início do XX. Para Borges:
[...] as
exposições não duravam... natureza efêmera... a Academia de commercio do RJ
propôs uma parceria com o poder publico municipal para criar um Museu
Commercial na capital federal... fins de 1905, o museu foi aberto... peça
fundamental na guerra do Brasil moderno contra o Brasil pitoresco...8
O texto “Museus e desenvolvimento industrial em Lille” de Dominique
Vandecaste se pauta na conjuntura de criação do espaço museológico e a
necessidade de educação técnica (tecnológica) naquele momento da França do
século XIX. .
Tem-se em “Preservação do patrimônio cientifico e técnico no Japão,” de
Kubota Toshio, a descrição bastante inovadora da experiência do Museu Nacional
de História Natural e Ciência, fundado em 1877 que atualmente funciona ao mesmo
tempo em cinco lugares diferentes do Japão. Além da pluralidade dos espaços o
museu realiza um trabalho inusitado com instituições privadas, o de catalogar
acervos ligados a diferentes setores técnicos de empresas. Os dados são
digitalizados e ficam à disposição, via internet, mas os objetos estão sob a
guarda dos proprietários e não do museu.
O artigo “O patrimônio contemporâneo: Programa Nacional e Projeto Europeu,” de Catherine Cuenca, conta que desde
2003, o “Musée des arts et métiers de Paris”, se preocupa com a conservação do
patrimônio científico e técnico contemporâneo do país, cuja intenção principal
é legar às novas gerações um tipo de informação que divulguem certos avanços
técnicos. Os objetos de comuns e cotidianos passam a objetos patrimoniais,
graças a programas criados nas últimas décadas do século XX pela instituição. A
autora ainda demarca a preocupação com profissionais vinculados aos tais
projetos, que começam a deixar o trabalho, devido às aposentarias.
A coletânea traz consequências de leituras, faz o leitor interpelar-se
sobre litígios para além dos textos como, por exemplo: como um objeto ou um
conjunto deles (coleções) tornam-se patrimônios? Sobre políticas de
composição/guarda de acervo, sobre os
profissionais e suas formações para as tarefas ligadas ao patrimônio, entre
outras.
Daí que, entre as lembranças surgidas com a leitura do livro em questão,
está a obra “Objeto Danado”(2004) do
professor e ex-diretor do Museu do Ceará Francisco Régis L Ramos, e com ela
finalizo o texto. Segundo Ramos, o objeto escapa à ordem ou a função que foi
designada a ele; parece-nos que assim se comportam as coleções em debate nos
artigos da coletânea Inovações, coleções,
museus aqui resenhada. Diz-nos Ramos (2004):
A
palavra “danação” tem sentido de fúria ou raiva, mas ainda pode ser
compreendida como anátema ou condenação a penas eternas. E na região do
Nordeste, com o sotaque próprio do autor, ela pode significar balbúrdia,
confusão, trapalhada.
Nos artigos, as coleções de objetos danados, estão carregadas ao mesmo
tempo do enquadramento do discurso que as originaram e de elementos de
relações, mediações, diálogos não esperados (desejados) quando pensados,
sistematizados, expostos.
Notas
(1) P. 8
(2) N.51/52, fevereiro de 2010.
(3) Cazuza. O Tempo não para. 1988. (4) P. 9.
(5) P. 18.
(6) P. 41.
(7) P. 108.
(8) P, 148.
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